A primeira final, o último jogo antes da guerra
Na véspera da decisão entre Barcelona e Real Madrid, relembramos a história da primeira final de Copa do Rei entre os rivais - um mês antes que estourasse a Guerra Civil Espanhola
Newsletter Meiocampo - 25 de abril de 2025
Se um dos lados da rivalidade se proclama como “mais que um clube”, o duelo entre Barcelona e Real Madrid também pode ser chamado de “mais que um clássico”, pelo significado político que possui na Espanha. Antes do início da Guerra Civil Espanhola, o último jogo por competições nacionais realizado no país foi exatamente a primeira final de Copa do Rei entre Barça e Real. Relembramos essa história, de tantos desdobramentos além da bola, na Newsletter Meiocampo desta sexta-feira. Outro tema quente é a despedida de Jamie Vardy do Leicester, um raro representante do amor à camisa. Por fim, um giro com assuntos palpitantes.
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A primeira final, o último jogo antes da guerra
Barcelona e Real Madrid disputaram sua primeira final de Copa do Rei em 1936, naquele que também foi o último jogo antes do início da Guerra Civil Espanhola - um conflito que impactou a vida de vários personagens da decisão e também a rivalidade
Por Leandro Stein
A história do clássico entre Barcelona e Real Madrid não se resume a grandes craques, jogos eletrizantes, lances memoráveis. Falar apenas de futebol é restringir a verdadeira dimensão da rivalidade, diante de seus profundos sentimentos e simbolismos dentro de uma disputa regional bem mais ampla. A Guerra Civil Espanhola é provavelmente o momento-chave para se explicar o peso de El Clásico, com as consequências de décadas de ditadura e a reconquista da liberdade a partir da redemocratização. Neste contexto, a Copa do Rei estabelece um marco a Barça e Real: a primeira final entre os rivais foi também o último jogo que os clubes disputaram antes da eclosão do conflito, a menos de um mês do início da guerra em 1936.
Não são muitas as finais da Copa do Rei entre Barcelona e Real Madrid. Considerando a dominância histórica dos dois clubes na Espanha e o poderio financeiro crescente nas últimas décadas, é pouco pensar que a partida deste sábado será apenas a oitava decisão entre os rivais na competição. Ainda assim, o passado de El Clásico na copa é riquíssimo. O torneio foi essencial para moldar os primórdios da rixa, em tempos nos quais La Liga ainda não existia. A Copa do Rei era o certame que permitia os duelos entre as potências regionais do país.
Embora o Athletic Bilbao despontasse como principal força no início da Copa do Rei, Madrid CF (a chancela de “Real” veio em 1920) e Barcelona também colecionavam taças. Só demorou para se encontrarem numa final. O primeiro duelo ocorreu em 1916, válido pelas semifinais. Foram necessárias quatro partidas para definir quem avançaria à decisão, com dois jogos de desempate. Depois do triunfo do Barça por 2 a 1 e do Madrid por 4 a 1, o primeiro jogo extra rendeu um titânico empate por 6 a 6. Os dois times precisaram voltar a campo dois dias depois e encarar mais uma prorrogação, até que os merengues finalmente prevalecessem por 4 a 2. Um dos heróis foi o jovem atacante Santiago Bernabéu, autor de seis gols naquela série, marcada também por controvérsias e animosidades.
Somente dez anos depois os rivais voltaram a se encarar pela Copa do Rei, nas quartas de final em 1926. O Real Madrid somava quatro títulos no torneio, mas o jejum se aproximava de uma década. Já o Barcelona, de seus seis troféus, três tinham vindo desde 1920. Somaram mais um à coleção, sem tomar conhecimento dos rivais naqueles confrontos. Em Madri, os barcelonistas aplicaram uma sonora goleada por 5 a 1, complementada pelos 3 a 0 na Catalunha. O carrasco da vez foi Josep Samitier, um personagem central que transitou pelos dois lados da rivalidade, tanto como jogador quanto como treinador e dirigente.
Igualmente, os torcedores precisaram aguardar mais dez anos por um novo embate. Agora, enfim, numa final em 1936. Os clássicos já tinham se tornado costumeiros a partir de 1929, com a criação de La Liga. A competição teve o Barcelona como primeiro campeão, dois pontos à frente dos rivais, enquanto o Madrid levaria suas duas primeiras taças após a virada da década. O nome do clube, aliás, voltara a ser apenas Madrid desde 1931 – ecos do estabelecimento da Segunda República Espanhola. A própria Copa do Rei sequer se chamava assim naquele momento, renomeada como Copa do Presidente da República.
A reabertura política da Espanha após o fim da ditadura de Primo de Rivera e a deposição do Rei Alfonso XIII se notava nos corredores dos clubes. O Barcelona era presidido desde 1935 por Josep Sunyol, advogado e jornalista que defendia publicamente a ideia de aproximar o futebol e a política. Como deputado, era partidário da independência catalã. Já o Madrid, que mesmo em sua fundação apoiava ideais reformistas, também possuía um pé fincado na democracia vigente. Seu presidente, Rafael Sánchez-Guerra, ocupou o posto de secretário-geral da Presidência da República até abril de 1936.
A primeira final da Copa entre Barcelona e Madrid aconteceu em 21 de junho de 1936, no Estádio Mestalla, em Valência. Uma decisão que nem precisou chegar ao apito final para ganhar ares míticos, graças ao seu grande protagonista: o goleiro Ricardo Zamora. O veterano era o mais celebrado futebolista da história espanhola até então, enquanto também sustentava sua reputação como um dos melhores arqueiros do mundo. Viveu o grand finale de sua trajetória profissional naquela tarde de verão.
O Madrid da final, formado por: Emilín, Zamora, Ciriaco, Lecue, Bru (treinador), Sañudo, Luis Regueiro e Bonet; Eugenio, Quincoces, Sauto e Pedro Regueiro.
A fama de Zamora como “El Divino” se construíra desde 1920, sendo vital na conquista da prata olímpica com a Fúria naquele ano e em outros momentos futuros da seleção. Embora tenha defendido a meta do Espanyol em grande parte da carreira, o goleiro pertencia ao Barça quando viveu sua eclosão. Já em 1930, ele trocou de lado no Clásico e se tornou um ícone do Madrid, o que gerou controvérsia. Curiosamente, o técnico dos madridistas naquela final de 1936 era também um ex-barcelonista: Paco Bru, presente nas agitadas semifinais de 1916 e depois treinador da Espanha nos Jogos Olímpicos de 1920.
Mais de 20 mil torcedores lotaram o Mestalla para a final da Copa de 1936. E com a maioria das arquibancadas apoiando o Barcelona, o “traidor” Zamora foi perseguido desde os primeiros minutos com vaias, sendo até atingido por uma garrafa. Apesar do clima hostil, o favoritismo estava com o Madrid e isso se concretizou no marcador logo de cara. Eugenio abriu o placar aos seis minutos e, já aos 12, Simón Lecue aumentou a vantagem. Os merengues, além do mais, contavam com uma forte defesa liderada por Jacinto Quincoces – um dos melhores de sua posição na Copa do Mundo de 1934, assim como Ricardo Zamora, em campanha até as quartas de final que deixou o Brasil pelo caminho.
O Barcelona, contudo, também tinha seus predicados. A equipe dirigida pelo irlandês Paddy O'Connell, um dos principais responsáveis pela modernização do futebol espanhol nos anos 1930, possuía vários nomes de relevo na história blaugrana – em especial o capitão Martí Ventolrá. E o Barça conseguiu voltar ao jogo ainda durante o primeiro tempo. Josep Escolà descontou aos 29 minutos e permitiu que o time vislumbrasse o empate, exigindo boas defesas de Zamora. A tensão se estendeu até os minutos finais, quando um dos lances mais épicos da história de El Clásico aconteceu.
Aos 38 minutos da etapa final, o Barça teve enorme oportunidade de igualar o marcador. Ventolrá cruzou e encontrou dois companheiros em ótima posição na área, a cinco metros do gol. Josep Raich furou, mas Escolà aproveitou o lance para dar um tiro à queima roupa, buscando o canto inferior. Zamora saltou e uma nuvem de poeira impediu que os torcedores vissem com clareza se a bola entrara. Quando a visão clareou, o arqueiro apareceu inacreditavelmente com a bola nos braços. Pela distância do chute, era uma defesa que parecia impossível. El Divino realizou seu último milagre e consumou a vitória por 2 a 1.
“Minutos, segundos faltam para que termine o duelo. O público, em pé, espera o apito final… quando Escolá escapa e fica sozinho diante de mim. Vejo como ele momentaneamente detém sua corrida, como em relâmpago, mede a distância, observa a minha colocação e inicia o disparo. Meus olhos não veem nada além de Escolá. Eu o vejo agigantado: no primeiro plano, os seus pés e a bola. Há um grito imperioso que me ordena por dentro: por aqui! Inclino o meu corpo para a esquerda, marco o lugar… Sem um milésimo de atraso, justos, coincidiram a bola e minhas mãos. Fecham-se os dedos segurando o couro. Meu! Nada mais que meu! Absoluta posse do que me pertence, daquilo que ninguém pode me tirar: a bola”, recordou Zamora, em 1988, ao jornal ABC.
Aquele lance ainda rendeu uma foto mítica (logo na abertura desta newsletter), que tão bem retrata o conceito de “momento decisivo” definido décadas depois por Henri Cartier-Bresson, um dos grandes gênios da fotografia. A imagem registra não apenas a bola entre os braços de Zamora, num salto arrojado para seu canto esquerdo, rente à trave. A própria poeira erguida em seu movimento enfatiza a ação, bem como o esforço expresso no rosto do arqueiro e a incredulidade do atacante do Barcelona que presencia a façanha. Capitão merengue, El Divino recebeu nas tribunas o troféu da Copa do Presidente da República. E realizou sua despedida dos gramados, ao anunciar sua aposentadoria em 18 de julho, aos 35 anos. O adeus da lenda, entretanto, estava distante de ser a notícia mais importante naqueles dias.
As tensões políticas já tomavam a Segunda República Espanhola em junho de 1936, enquanto Madrid e Barcelona se preparavam à primeira final de copa. Dois dias após a decisão, o general Francisco Franco enviou uma carta ao presidente Casares Quiroga, em que advertia a insatisfação dos militares com o governo. Já o estouro do golpe militar aconteceu em 17 de julho, quando os rebeldes nacionalistas iniciaram a tomada de cidades e os ataques aos alvos republicanos.
O Barcelona da final, formado por: Modesto Amorós (massagista), Iborra, Franco, Balmanya, Bayo, Areso e Argemí; Vantolrá, Raich, Escolá, Fernández e Munlloch.
A história da Espanha se transformou a partir deste momento, assim como a história de vida de vários dos personagens envolvidos no Madrid 2x1 Barcelona de 1936. O presidente barcelonista, Josep Sunyol, foi assassinado em 6 de agosto de 1936. O dirigente ia a Madri para entregar uma mensagem do parlamento catalão ao governo republicano, quando entrou por engano numa área tomada pelos franquistas. Já o presidente merengue, Rafael Sánchez-Guerra, deixou o comando do clube em agosto de 1936 e permaneceu na capital até ser preso em março de 1939. Apesar de condenado à prisão perpétua, teve sua pena reduzida e se exilou na França, permanecendo 13 anos fora do país até a volta em 1959.
A situação do Madrid foi até mais crítica durante a Guerra Civil. Com a cidade sob constantes ataques fascistas, o governo se transferiu para Valência e as ruas madrilenas foram ocupadas por milícias de esquerda, sob apoio das Brigadas Internacionais. A própria administração dos merengues ficou a cargo de comitês proletários – um dos presidentes interinos do período, Antonio Ortega Gutiérrez, foi executado por franquistas. Já o Estádio de Chamartín (o atual Bernabéu) teve seu terreno usado para os mais diferentes fins. O gramado de início serviu para treinamentos do chamado "Batalhão Desportivo", grupo de combate que reunia esportistas. Com o agravamento da situação, o campo foi usado como horta, para garantir o mínimo de comida, enquanto o material das arquibancadas acabou saqueado para outras finalidades, como transformar madeira em combustível.
Já o Barcelona ainda desfrutou do futebol por um tempo, antes que os combates na cidade se tornassem mais intensos. O Campeonato da Catalunha, uma liga regional, foi realizado em 1936/37. Inclusive, algo impensável dentro do contexto da rivalidade aconteceu naquela temporada: o Madrid e também o Atlético de Madrid fizeram uma solicitação aos dirigentes catalães para disputarem a competição. Tal pedido foi rechaçado. Os cartolas do Barcelona justificaram que a admissão dos madrilenos feria o “espírito catalão” do torneio. A ampliação do front na guerra, de qualquer maneira, logo afetou o certame regional. Em março de 1938, a sede social do clube foi atingida por uma bomba que destruiu arquivos blaugranas.
Na sequência dos anos de guerra, fugir da Espanha foi uma alternativa tanto a jogadores do Barcelona quanto do Madrid. O Barça conseguiu deixar o país em 1937, quando realizou uma turnê por México e Estados Unidos. Alguns dos protagonistas da final da Copa de 1936 optaram por não retornar à Catalunha de imediato. O capitão Ventolrà e o goleiro José Iborra atuaram por mais de uma década no próprio Campeonato Mexicano. O filho de Ventolrà, José, defendeu até mesmo El Tri na Copa do Mundo de 1970. Outros fugiram para a França, como Josep Escolà. Ao lado de Domènec Balmanya e Josep Raich, o atacante assinou com o Sète e retornou ao Barça apenas em 1940.
O Madrid, por sua vez, viu alguns de seus destaques de origem basca se unirem à seleção formada no País Basco para representar a causa republicana ao redor do mundo. A principal figura era o atacante Luis Regueiro, protagonista da seleção espanhola no Mundial de 1934 e nomeado capitão da equipe basca. Ele estava acompanhado por seu irmão mais novo, o defensor Pedro Regueiro, e também pelo atacante Emilín – todos titulares na final de 1936. Mesmo o Barcelona tinha um convocado àquela seleção basca, o defensor Pedro Areso. A equipe Euzkadi disputou amistosos por França, Tchecoslováquia, Polônia, União Soviética, Noruega e Dinamarca, antes de cruzar o Atlântico para atuar em México, Argentina, Chile e Cuba. Os bascos chegaram até a jogar o Campeonato Mexicano na temporada 1938/39, terminando como vice-campeões.
A maioria daqueles jogadores bascos não voltou à Espanha de imediato. Luis e Pedro Regueiro atuaram por clubes mexicanos, enquanto Pedro Areso seguiu na Argentina. Emilín jogou em ambos os países. Sobre o capitão Luis Regueiro, franquistas chegaram até a espalhar que tinha sido assassinado por republicanos antes da viagem, embora fosse simpático à causa basca. Não foi o único a sofrer com boatos. O próprio Ricardo Zamora foi dado como morto e teve missas rezadas em seu nome. Acusado de colaborar com a imprensa conservadora, o ex-goleiro foi preso em Madri pelos grupos de esquerda. Temeu a execução, mas as façanhas da carreira sempre eram saudadas por seus captores e ele pôde fugir para a França, após grande campanha por sua liberdade – que teve participação de ex-companheiros de seleção, incluindo barcelonistas como Ventolrà. No novo país, Zamora encontrou-se com Samitier, outro craque exilado. O arqueiro inclusive voltou a jogar brevemente ao lado do antigo companheiro e ambos defenderam o Nice.
Outros jogadores bascos do Madrid de 1936 não se uniram à seleção Euzkadi por suas convicções políticas. Jacinto Quincoces e Ciriaco eram nacionalistas, retornando às suas cidades no País Basco durante o início da guerra. Simón Lecue foi outro basco que recusou o convite para participar da turnê. Já o meio-campista José Ramón Sauto, nascido no México e criado na Espanha, realizava o serviço militar quando o conflito se iniciou e lutou ao lado dos franquistas. Chegou a ser preso, conseguiu asilo na embaixada mexicana e depois voltou aos combates em Navarra. Sobreviveu para ser capitão do Madrid anos depois, na década de 1940. A mesma sorte não teve Monchín Triana, jogador merengue de 1928 a 1932, que foi executado em novembro de 1936 sob alegação de ser monarquista.
Os icônicos Zamora e Samitier, personagens em comum nos dois lados de El Clásico
O Barcelona também teve antigos ídolos que lutaram do lado franquista. Paulino Alcántara se manteve como o maior artilheiro do clube até ser ultrapassado por Lionel Messi e estava entre as grandes referências da equipe de múltiplas conquistas na Copa do Rei durante os anos 1920. Aposentado em 1927, o ex-atacante se voluntariou durante a guerra civil e participou de diversas operações militares ao lado dos falangistas, chegando ao posto de tenente-médico. Integrou inclusive os Flechas Negras, unidade militar apoiada pelos fascistas italianos. Após a guerra, Paulino chegou a ser assistente técnico do Barça. Seu ex-companheiro de clube, Ángel Arocha, também participou da guerra ao lado do exército. Jogador do Barça de 1926 a 1933, faleceu durante o conflito em 1938.
Madri foi a última cidade a ser conquistada pelos falangistas. A queda da capital marcou o fim da Guerra Civil Espanhola, em abril de 1939, e o início da ditadura de Francisco Franco. O futebol logo seria usado para transmitir um “senso de normalidade” à população. Como o esporte não parou de imediato, versões reduzidas da copa nacional aconteceram em territórios ainda dominados por republicanos e também naqueles tomados por franquistas – disputada por valencianos e catalães, a chamada “Copa da Espanha Livre de 1937” foi reconhecida como título oficial pela federação espanhola em 2023. Já em maio de 1939, poucas semanas após o fim da guerra, a antiga Copa do Rei foi retomada. Vinha rebatizada como “Copa do Generalíssimo”, nome que perdurou até 1976. Madrid e Barcelona não participaram, sem times madrilenos ou catalães naquela edição. O Sevilla foi o campeão.
A primeira potência de La Liga durante a ditadura de Franco foi o Atlético Aviación, clube que se originou com a aeronáutica em Aragão e se fundiu logo depois com o Atlético de Madrid. Os colchoneros foram bicampeões nacionais em 1939/40 e 1940/41. Seu treinador era ninguém menos que Ricardo Zamora – que, apesar de alegadas ligações com os falangistas e acusado de renegar seu orgulho como catalão, colocava o “nacionalismo espanhol” acima de qualquer preferência política.
A volta de La Liga permitiu também o reencontro de Barcelona e do renomeado Real Madrid, que ficaram mais de três anos sem se enfrentar após a final de 1936. Muita coisa havia mudado em tão pouco tempo. Os barcelonistas, assim como vários outros clubes da Espanha, tiveram suas referências regionais e estrangeiras retiradas dos símbolos. Até o escudo e o nome do clube foram modificados. Enquanto isso, o orgulho catalão era suprimido no país e o Estádio de Les Corts se tornava um raro oásis no qual o idioma local podia ser falado. Do lado merengue, crescia a influência de Santiago Bernabéu, o antigo ídolo que se tornara dirigente nos anos 1930 e que se alistou entre os franquistas na Guerra Civil. Após ser salvo da execução e condecorado por suas contribuições aos falangistas, o cartola (eleito presidente em setembro de 1943) usou conexões em prol do clube, como na reconstrução do antigo Estádio de Chamartín rumo ao gigantismo do atual Bernabéu.
Apesar da perseguição de Franco às identidades regionais, o Barcelona não seria apenas prejudicado durante os anos da ditadura. Pelo contrário, usar o futebol como “ópio do povo” também era de interesse dos franquistas na Catalunha e no País Basco, desde que isso não reforçasse os anseios separatistas – o que era difícil de dissociar, dado o caráter dos principais clubes locais. O Barça passou a ser presidido por um dirigente designado pelo regime e até venceu antes que os rivais a Copa do Generalíssimo, em 1942, num emocionante 4 a 3 sobre o Athletic Bilbao na decisão. Escolà, aquele mesmo frustrado por Zamora, fez dois gols. Ele era um dos remanescentes do vice em 1936, assim como Balmanya e Raich, que o acompanharam no exílio na França. Os três foram suspensos por um ano pela “deserção”, mas acabaram readmitidos pela federação.
Já o próximo Clásico pela Copa do Generalíssimo, o primeiro desde 1936, aconteceu nas semifinais de 1943. É o Barcelona x Real Madrid mais infame da história. O triunfo barcelonista por 3 a 0 em Les Corts foi pulverizado pelos 11 a 1 dos madridistas no Chamartín. Antes da goleada, os catalães afirmam que o elenco foi intimidado nos vestiários pelo diretor de segurança da ditadura franquista. Ele apontou que alguns dos jogadores, sobretudo aqueles que deixaram o país durante a guerra, só poderiam atuar porque o regime "perdoou a falta de patriotismo deles". Curiosamente, quatro gols do Madrid foram anotados por Sabino Barinaga, basco que ainda adolescente se refugiou na Inglaterra durante a guerra civil e até começou sua carreira no Southampton, antes de se transferir aos merengues. Sauto, o antigo soldado franquista, era seu companheiro de time.
No fim das contas, o Real Madrid foi vice-campeão na Copa do Generalíssimo de 1943 – o que parece importar pouco, quando a memória mais contundente da campanha é favorável ao clube. A Guerra Civil já tinha se encerrado, mas a cisão com o Barcelona até aumentou depois do fim dos conflitos. Aquele embate nas semifinais serviu de retrato. A recepção ao Madrid em Les Corts já tinha sido hostil, mas em Chamartín os jogadores do Barça foram recebidos sob gritos de “matem esses cachorros catalães” – num discurso alimentado pela imprensa da capital, que acusava conspirações catalãs contra o governo. Se a final de 1936 marca o fim de uma era, o reencontro nas semifinais de 1943 reabre uma história bem mais tensa.
* Como dica de leitura, fica a recomendação do livro "De Riotinto a La Roja: uma viagem pelo futebol espanhol", de Jimmy Burns Marañón – que, entre outros textos, foi a principal fonte deste artigo.
🎧PODCAST MEIOCAMPO #126
Em uma semana movimentada da Libertadores, destaque no podcast desta sexta-feira para o Bahia, que lidera o grupo mais complicado da competição. Também falamos sobre os 100% do Palmeiras, mesmo jogando em La Paz, e a ótima vitória do São Paulo. Tem também quem está ameaçado, como o Fortaleza.
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Jamie Vardy e os méritos de ser o que ficou
Dos campos amadores ao título da Premier League: o conto de lealdade de um herói improvável
Por Bruno Bonsanti
O mercado de transferências sempre foi uma indústria. É o que você espera de uma coisa que tem “mercado” no nome. A novidade é que ela se espalhou intensamente para muito além do gramado nos últimos anos. Se a imprensa sempre cobriu o vai e vem talvez mais do que deveria, nunca tanto quanto agora. Em um momento de definição dos campeonatos europeus, em que contratações nem podem ser feitas, há espaço demais para discutir para onde vai Matheus Cunha ou Alexander-Arnold, qual posição a Juventus precisa reforçar ou se o Real Madrid trará novos zagueiros.
Isso deixa o torcedor em um constante estado de imaginação. Nos times pobres, sofre por antecipação pelo futuro sem seu jogador favorito. Nos ricos, monta times ideais na cabeça como se estivesse jogando Football Manager. Principalmente, imagina-se o que acontecerá quando alguém sair ou quando alguém chegar. Poucas vezes imaginamos o que poderia acontecer se alguém ficasse. Porque há poucos exemplos para se basear. Porque poucas vezes os jogadores só ficam.
Jamie Vardy foi um que ficou.
Quando o Leicester conquistou aquele título, a galera foi com tudo para cima dos seus principais jogadores. Vardy era um alvo natural. Ele havia marcado em 11 rodadas consecutivas da Premier League, quebrando o recorde de Ruud van Nistelrooy (curiosamente, o seu último técnico nas Raposas). Foram 24 gols no total, mesma marca de Sergio Agüero, um atrás de Harry Kane. Era na companhia dos melhores atacantes do mundo que ele estava naquele momento, mesmo aos 29 anos.
Jogadores raramente chegam a clubes de elite pela primeira vez nessa idade, mas o que provavelmente ajudou a abrir uma exceção para Vardy foi a sua extraordinária trajetória. Ele começou na oitava divisão do futebol inglês, ganhando £ 30 de ajuda de custo e conciliando o futebol com seu trabalho em uma fábrica que produzia instrumentos médicos com fibras de carbono.
Subiu degrau por degrau com o Stocksbridge Park Steels, que nem parece um nome de clube de futebol de verdade, e com o Halifax Town até levar o Fleetwood Town à quarta divisão em 2012 e finalmente ganhar a sua chance com o Leicester na Championship. Custou £ 1 milhão, ou 33.333 vezes o seu primeiro salário como jogador.
Então, tudo bem, ele tinha 29 anos, mas tanto a sua história quanto a do Leicester desafiavam as regras, e o Arsenal se sentiu confiante o bastante para colocar £ 22 milhões na mesa. Não era um valor exorbitante nem para a época, mas ainda seria uma das 25 contratações mais caras da Premier League naquela temporada. O seu salário, esse sim, seria altíssimo.
Houve acordo entre os clubes, e Vardy parecia propenso a aceitar. Era a decisão óbvia, a decisão natural, a decisão que todos tomariam. Ele chegou a visitar as instalações dos Gunners antes de acabar mudando de ideia.
Segundo Arsène Wenger, Vichai Srivaddhanaprabha, o histórico dono do Leicester que morreu tragicamente em um acidente de helicóptero, cobriu a proposta do Arsenal. O dinheiro seria o mesmo, mas havia outros atrativos. O título havia sido um acaso. Ninguém esperava que se repetisse, nem sequer que o Leicester brigasse por ele novamente. A progressão esperada seria que Vardy se transferisse para um clube mais forte.
Mas outras coisas pesaram mais:
“Meu coração e minha cabeça estavam me dizendo para ficar no Leicester. Foi exatamente o que eu fiz. Foi uma decisão que pareceu certa”.
Como teria sido o resto da carreira de Vardy se ele tivesse saído do Leicester? Os seus colegas de milagre, N’Golo Kanté e Riyad Mahrez, foram para clubes ingleses mais poderosos e expandiram suas coleções de medalhas. O Arsenal não foi tão bem sucedido quanto Chelsea e Manchester City naquele período, mas talvez o fosse com Vardy. Talvez ele pudesse ter ido para outro clube alguns anos depois.
Mas essa parte também é notável: Vardy não ficou apenas uma vez. Também ficou quando o Leicester caiu para o meio da tabela e ficou quando ele foi rebaixado. Claro que a segunda permanência não foi como as outras porque ele já era um veterano, mas tinha status suficiente para procurar um contratinho em alguma liga caça-níquel se realmente quisesse.
O Leicester voltou a ser competitivo com Brendan Rodgers, duas vezes batendo na trave para se classificar à Champions League, disputando competições europeias e conquistando uma Copa da Inglaterra. A contribuição de Vardy foi essencial em todo esse processo. Ele emendou mais seis temporadas marcando pelo menos 10 vezes na Premier League.
Mas é fato que não conquistou tanto quanto poderia conquistar, tanto quanto Kanté e Mahrez conquistaram, porque ele acabou sendo o que ficou.
Em vez de mais títulos, o que ele ganhou foi uma mensagem, publicada no Leicester Mercury, em que Mark diz categoricamente que ele é o maior jogador da história do Leicester e, em outras, Nigel garante que ele sempre será uma lenda, e Harry o caracteriza como um verdadeiro ícone do Leicester, e Matty tem certeza que nenhum outro clube jamais terá um Jamie Vardy e dá uma ordem para a diretoria: CONSTRUA. A. ESTÁTUA.
Vardy precisou rodar bastante antes de encontrar a sua casa, mas quando a encontrou, não teve interesse em outra. Então, não foi um jogador de um clube só, talvez nem se aposente imediatamente, mas, a menos que faça algo extraordinário aos 38 anos, será lembrado por apenas um clube.
É quase a mesma coisa.
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Giro
- O Milan deu uma sapecada na Inter, em um irrepreensível 3 a 0, e vai decidir a Copa da Itália contra o Bologna. Luka Jovic marcou duas vezes, o que aumentou a sua conta de gols na temporada para quatro. O terceiro gol, marcado já no final do jogo, foi do neerlandês Tijjani Reijnders, um dos destaques do time. O Milan, assim, terminará a temporada sem derrota para a Inter: foram cinco jogos, com três vitórias milanistas e dois empates. A equipe comandada por Sérgio Conceição chega à sua segunda final, depois de conquistar a Supercopa da Itália. A decisão da Coppa será no dia 14 de maio.
- A Uefa está estudando fazer três mudanças importantes na Champions League já para a próxima temporada. Segundo o Bild, da Alemanha, as alterações são: acabar com a prorrogação e ir direto para os pênaltis; clubes que fizeram melhor campanha na fase de liga decidem em casa até a semifinal, já que a final é jogo único (coisas que a Conmebol já faz há tempos, apreende Uefa); bloqueio de clubes do mesmo país se enfrentarem na fase de playoffs e oitavas de final (como aconteceu nesta temporada com Real Madrid x Atlético de Madrid, Bayern de Munique x Leverkusen e PSG x Brest, por exemplo). Parecem medidas até razoáveis, embora esse bloqueio de países soe desnecessário, ainda que seja compreensível.
- A Globo irá transmitir a Copa do Mundo de Clubes, ou o Super Mundial de Clubes, como alguns estão chamando. A empresa carioca entrou em acordo com o DAZN, que comprou os direitos exclusivos no mundo inteiro, e vai transmitir todos os jogos dos brasileiros, além de abertura e final, mesmo que não tenha times do país envolvidos. Além disso, transmitirá cerca de 50% do resto da competição. O Sportv vai transmitir ao menos 40 jogos, enquanto a Globo e o site do GE irão transmitir ao menos 25. Todos os jogos serão transmitidos pelo DAZN. A Cazé TV também irá transmitir o torneio, incluindo clubes brasileiros, então é bem possível que tenhamos ao menos alguns jogos na Globo, Cazé TV e DAZN simultaneamente.
Bom final de semana, nos vemos na terça!
Que baita texto sobre a final e o contexto da Guerra Civil! Os olhos brilharam enquanto eu lia, igual aos tempos em que acompanhava diariamente o antigo site.
Muito feliz de poder voltar a ler os três com mais frequência!
Grande Lobo, poderia me add no grupo de WhatsApp dos membros? Virei membro fundador pelo Substack há uns dias. Forte abraço